Como explicar que um dos traficantes mais perigosos do Brasil ainda seja
capaz de se comunicar de dentro de uma penitenciária de segurança
máxima? Por meio de pequenas tiras de papel, Fernandinho Beira-Mar
manda, desmanda e controla o tráfico de drogas de dentro da cadeia. Mas
foi através desses bilhetes que a polícia conseguiu desvendar a
sofisticada engenharia financeira usada para lavar o dinheiro do crime. A
reportagem especial é de Vladimir Netto e Tyndaro Menezes.
Ele controla todos os detalhes. “Estoques, qual faturamento líquido
semanal de cada firma e quais as despesas de cada empresa, quem são as
pessoas que estão na folha de pagamento e o porquê”, aponta um bilhete.
Dá ordens claras e exige obediência. “Vou lhes fazer um resumo e quero
que seja feito exatamente como eu determinar”, está escrito em outro
bilhete.
Se ele percebe um erro... “Eu não acredito que vocês fizeram isso sem me
consultar. Já deixei bem claro que as firmas são minhas e que vocês não
podem tomar certas atitudes antes de me consultar”, disse em um dos
bilhetes.
Esses bilhetes não foram escritos por nenhum executivo ou empresário
brasileiro, e sim por um traficante: Fernandinho Beira-Mar, talvez o
mais perigoso do país. Isso, apesar de estar preso há dez anos, quase
sempre em presídios de segurança máxima, como o de Mossoró (RN), para
onde ele foi há pouco mais de um mês. É de dentro dos muros que ele dá
ordens minuciosas para sua quadrilha.
De acordo com uma investigação do núcleo de combate à lavagem de
dinheiro da Polícia Civil do Rio de Janeiro, os textos foram escritos de
janeiro a junho do ano passado, período em que Beira-Mar estava na
Penitenciária Federal de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul. Arcelino
Damasceno, diretor do presídio na época, hoje à frente da unidade de
Mossoró, no entanto, diz desconhecer os bilhetes.
“Eu não tenho conhecimento de tais cartas. Ele tem o direito a papel,
tem direito a caneta até para escrever suas cartas. Agora se passou ou
não isso não é do meu conhecimento”, afirma o diretor do Presídio de
Mossoró, Arcelino Damasceno.
Direito de escrever cartas na prisão, todo preso tem. Mas Fernandinho
Beira-Mar não queria que descobrissem o conteúdo de suas mensagens. Por
isso, desenvolveu uma técnica para mandar suas ordens, no maior sigilo,
em retalhos de papel.
O Fantástico conseguiu com exclusividade os originais desses bilhetes, O
maior tem seis centímetros e meio de largura e a menor, menos de um.
O traficante fazia de tudo para que os papeizinhos passassem
despercebidos. Conseguia escrever três ou quatro linhas no espaço de
uma. Usava apenas a ponta da carga de uma caneta esferógrafica,
disfarçada entre os dedos. Provavelmente, apoiava os papéis nos livros
que gosta de ler ou no próprio corpo.
A polícia acredita que as mensagens saiam da cadeia com os visitantes,
enroladas e escondidas na costura das roupas. Luiz Fernando da Costa tem
direito a três horas de visita social por semana e pode receber
advogados livremente, conforme prevê a lei.
“Quero tudo no papel. Me mandem por escrito detalhadamente da mesma
forma que mando carta para vocês. Para que eu possa trazer para a cela,
ler com calma, analisar e codificar. E, na outra visita, se eu tiver
dúvidas, mandar por escrito. Pois o meu tempo de visita é muito curto e
não dá tempo para eu ler o que vocês me mandam, analisar e mandar
resposta”, escreveu Beira-Mar em um dos bilhetes.
Os bilhetes saíam do presídio e iam para as favelas do Complexo do
Alemão, no Rio de Janeiro, onde foram encontrados durante a ocupação do
fim do ano passado. Beira-Mar não é do Alemão, mas o conjunto de favelas
tinha se tornado o centro das operações da maior facção criminosa do
Rio. A polícia logo suspeitou que os textos eram dele. A prova
definitiva veio com um exame grafotécnico.
O exame, feito no Instituto de Criminalística Carlos Éboli, usa como
base dois documentos escritos e enviados à direção do presídio. Em um
deles, Beira-Mar assina “Luiz Fernando da Costa”, e no outro, “Luiz F.
da Costa”. Os documentos contêm uma lista de visitantes que ele quer
receber.
A polícia comparou os bilhetes apreendidos no Alemão com a relação de
visitantes. Os peritos primeiro analisaram o sobrenome “Costa”. Depois
encontraram semelhanças na grafia das palavras “visitando” e
“visitantes”. As letras "nh" seguem o mesmo padrão nas palavras
"dinheiro" e nelas, o final da letra “N” é emendado com o início do “H”.
Ele também escreve “quero” em vários momentos, sempre do mesmo jeito. A
proporção das letras se repete perfeitamente nas palavras "meu filho" e
"meus filhos". A polícia não tem dúvidas quanto à autoria dos bilhetes
apreendidos no Rio.
“A gente não tem notícia de uma prova tão contundente quanto essa. Com a
apreensão desses bilhetes e através de exames técnicos específicos, nós
conseguimos comprovar que aquela escrita, de fato, foi feita pelo
Fernandinho Beira-Mar”, afirma o subchefe da Polícia Civil do Rio,
Fernando Veloso.
Para a quadrilha de Beira-Mar, os retalhos de papel com letra minúscula
eram a prova da palavra do chefe. A melhor maneira que ele tinha para
manter o controle sobre os negócios, que incluem, além do tráfico no
atacado e no varejo, o transporte de armas e drogas do Paraguai para o
Rio. Todo um esquema complexo que a polícia começou a desvendar com a
análise dos bilhetes.
“Nós compraríamos uma carreta em sociedade e traríamos em cada viagem
5.000 quilos de café, sendo 2.500 dele e do tio e 2.500 meus e do
chapa”, diz em um dos bilhetes.
A Polícia Civil do Rio estima que em 2010 o traficante enviava a cada 15
dias para o Complexo do Alemão cinco toneladas de maconha, que ele
chama no bilhete de “café “. Quando o conjunto de favelas foi ocupado,
em novembro, 33 toneladas de maconha foram apreendidas. Dez toneladas
eram de Beira-Mar, mas a maconha é apenas um dos produtos que o
traficante negocia nas bocas de fumo, ou "firmas", como ele prefere.
“Além do café, viriam junto para os meus fiéis e para minhas firmas sem
custo de frete, hidropônica, haxixe, armas, munições, comprimidos e as
misturas para as minhas firmas”, escreveu Beira-Mar em um dos bilhetes.
Beira-Mar acompanha tudo, até a cotação no mercado externo de um fuzil,
que ele chama de "bico". “O preço de um bico aqui em cima varia de 13 a
14 mil dólares. pistolas na média de 1.200 a 1.500 dólares, mais frete e
a porcentagem da casa de câmbio”, diz Beira-Mar em um dos bilhetes.
Depois que a droga é vendida, começa a etapa da lavagem do dinheiro. E
agora vem a grande revelação dos bilhetes obtidos pelo Fantástico: o
lucro da droga entra e passa a circular no sistema bancário brasileiro
através de uma estrutura paralela ao tráfico, que a polícia está
chamando de "terceiro setor".
Funciona da seguinte maneira: o dinheiro sai da favela em pacotes de
notas pequenas, que somam, no máximo, R$ 10 mil, e são carregados por
mulheres da própria comunidade. Elas levam o dinheiro para agências
bancárias próximas à favela e fazem vários depósitos miúdos, às vezes
minuto a minuto.
O dinheiro entra em contas do esquema de lavagem espalhadas por agências
bancárias de todo o Brasil. Em cada um desses bancos, as somas são
sacadas na boca do caixa e depositadas em dinheiro vivo em outras contas
do próprio esquema, de bancos de outros estados. Assim, evitam
transferências que podem ser rastreadas. O destino final do dinheiro a
polícia ainda não sabe qual é.
“É possível que a apreensão desses escritos represente um marco na
história da investigação contra o tráfico de drogas, porque a partir de
agora a polícia sabe o caminho. O terceiro setor pode ser maior do que
essa estrutura de tráfico de drogas e é mais potencialmente lesivo do
que o próprio tráfico de drogas propriamente dito”, explica Veloso.
Segundo a polícia, o tráfico não tem controle sobre o esquema. O
labirinto financeiro é totalmente montado pelo terceiro setor e aos
traficantes cabe apenas fazer os depósitos nas contas. “Mande depositar
232 mil. Já está incluído tudo: taxa de câmbio, frete, comissões dos
meus fiéis e os mil reais que ganho nas costas dele”, aponta um bilhete.
O grande objetivo da polícia agora é descobrir quem administra essa
engenharia financeira que lava o dinheiro do tráfico, mas já identificou
182 pessoas físicas e jurídicas, donas de contas por onde passaram R$
62 milhões do tráfico só no ano passado.
Quase todo esse valor foi identificado como movimentações bancárias
atípicas, feitas em velocidade, forma ou frequências estranhas. Com a
análise dos bilhetes, Fernandinho Beira-Mar está mais uma vez na mira da
Justiça.
“Ele praticou o crime de lavagem de dinheiro, então ele vai responder por mais esse crime”, garante o subchefe da Polícia Civil.
Os bilhetes revelam ainda que Beira-Mar não desiste da ideia de fugir da
cadeia. Em um papel, ele manda sequestrar autoridades que só seriam
libertadas quando ele estivesse solto: “Acelerem o cativeiro, pois essa
semana a pessoa já vai estar pronta para ser pega”.
O bilhete não revela que autoridade seria essa, mas é ameaçador.
Fernandinho Beira-Mar orienta que se essa condição não fosse aceita...
“Só lamento. Passem fogo na pessoa e vamos pegar outra com mais peso
político”, dizia um bilhete.
No fim do ano passado, já depois da ocupação do Alemão, Beira-Mar foi
transferido do Presídio Federal de Campo Grande para o de Catanduvas, no
Paraná. Mas a Polícia Federal descobriu que ele tinha outro plano de
fuga.
Desta vez, os comparsas queriam invadir a cadeia, resgatá-lo e levá-lo
para o Paraguai. Por isso, ele está hoje em Mossoró, no Rio Grande do
Norte. O diretor do Sistema Penitenciário Federal, Sandro Avelar, não
confirma a existência do plano de fuga, mas também não nega.
“Tem determinadas situações que, em se tratando de um presídio de
segurança máxima, nós não temos como falar em público”, disse o diretor
do Sistema Penitenciário Federal, Sandro Avelar.
As investigações da polícia devem fazer com que Beira-Mar volte para o
regime disciplinar diferenciado (RDD), onde ele fica mais isolado. Mas o
episódio levanta uma discussão: é preciso um regime ainda mais duro
para impedir que criminosos administrem negócios ilegais de dentro das
cadeias?
O deputado federal Fernando Francischini (PSDB-PR), que é delegado da
Polícia Federal e tem no currículo operações como a que levou à prisão
do traficante colombiano Juan Carlos Abadia, apresentou um projeto de
lei no Congresso que cria um novo regime disciplinar para bandidos
ultra-perigosos: o RMAX, mais rigoroso que o atual RDD.
“O ponto mais importante é o isolamento do crime organizado. Acabar com
as visitas íntimas, onde trocavam recados, cartas para o comando aqui
fora. Cela e banho de sol individual, e o advogado e familiares só têm
contato com o preso em cabine blindada, com autorização judicial para
gravar em áudio e vídeo”, afirma o deputado federal Fernando
Francischini.
Pequenas tiras de papel e duas consequências importantes: a discussão
sobre como manter um bandido realmente isolado; e a possibilidade
inédita de dar um golpe certeiro em um setor do tráfico que nunca foi
atingido.
“Hoje a polícia sabe a forma como uma grande quadrilha de tráfico de
drogas opera para fazer a lavagem desse dinheiro. Agora é encaixar as
peças do quebra-cabeça e desmantelar a quadrilha, usar esse mesmo
conhecimento no desmantelamento de outras quadrilhas, porque é bem
provável e bem possível que outras estruturas criminosas usem essa mesma
engenharia financeira para lavar o dinheiro que vem do tráfico”,
conclui Fernando Veloso.
Fonte: G1